CLAC
Coordenação Latino-americana Ca' Foscari
Coordenação Latino-americana Ca' Foscari (CLAC) é um grupo multidisciplinar da Universidade Ca' Foscari Veneza que concentra seus estudos entorno à América Latina.
Através da pesquisa, seu objetivo é incentivar a reflexão sobre campos teóricos, ética e metodologias de pesquisa. A CLAC se propõe como um laboratório para o debate e a troca de ideias, um espaço experimental que incentiva a colaboração entre seus participantes.

Eventos
Ano letivo 2025/2026 2025/2026
- 19/11/2025 - Medios y política exterior en México en torno a la cuestión de Palestina (Laboratorio "Fonti e Metodi per lo studio dell’America Latina") [ITA]
- 29/10/2025 - Apresentação do livro “Un golpe global. La experiencia autoritaria chilena en el mundo” [ITA]
- 20/10/2025 - Un pájaro negro: Dios o el asesino, o el poeta. Colombia, una trinchera de poemas [ITA]
- 14/10/2025 - Fuentes y métodos de pedagogía, para la participación de la poesía en la educación (Laboratorio "Fonti e Metodi per lo studio dell’America Latina") [ITA]
- 30/09/2025 - Cargando con Cuba: transnational economies of care in Cuban migration (Laboratorio "Fonti e Metodi per lo studio dell’America Latina") [ITA]
- 12/03/2025 - Apresentação “Jacqueline Goldberg incontra Ca’ Foscari” [ITA]
- 27/01/2025 - Conferência “Imágenes de mecanización, extractivismo y transformación social en la Sudamérica indígena” [ITA]
- 25-26/11/2024 - Congresso “Entre lo espacial y lo visual: género, trauma y memoria durante la Guerra Fría en América Latina” [ITA]
- 5/10/2024 - Congresso "Emplacing Ferality and Domestication in the Plantationocene" [ENG]
- 12/09/2024 - “Mitologías y narraciones de la desaparición forzada en México a 10 años del caso Ayotzinapa” [ITA]
Miscelânea
O CLAC celebra a publicação de quatro novos livros que ampliam os horizontes do pensamento crítico e cultural na América Latina. Cartas para Pepo: Intimidad, género y clase (Chile, siglo XX) [ITA], de Claudia Stern, membro do CLAC, reconstrói uma história das emoções e da vida cotidiana a partir da correspondência e do arquivo visual do desenhista René Ríos Boettiger, explorando as relações entre intimidade, gênero, espaço urbano e classe social. La velocidad en los mundos lentos: Accidentes, máquinas y sociedades en América del Sur [ITA], editado por Nicolas Richard, Diego Villar — também integrante do CLAC — e Alberto Preci, propõe uma reflexão sobre os acidentes, as máquinas e as temporalidades da modernidade em regiões isoladas da América do Sul. Documentar la realidad: Cruce de géneros y fronteras en América Latina [ITA], editado por Oswaldo Estrada e Laura Alicino, membro do CLAC, aborda a “virada documental” na literatura, no teatro, na poesia e no cinema contemporâneos, investigando as formas como a arte latino-americana enfrenta a memória, a representação e a possibilidade de uma comunidade para além das fronteiras. Por fim, Stories Come to Matter: Water, Food, and Other Entanglements [ENG], coeditado por Santiago Alarcón Tobón, membro do CLAC, e Enric Bou, reúne pesquisas que entrelaçam as Humanidades Ambientais com os estudos sobre a água e a alimentação, abordando temas como os conflitos hídricos na América Latina, a ecocrítica e os novos materialismos.




Curador Elena Zapponi, Apresentação de Italo Calvino, Quodlibet, Macerata, 2024
Em um dos estudos pioneiros sobre a história da escravidão, Los negros esclavos (1916), do antropólogo cubano Fernando Ortiz, ele explica a palavra cimarrón, de uso geral na América, a partir da etimologia cima (montanha).
Não é de origem cubana, pois era de uso geral nas Índias. Deriva, de acordo com o dicionário da língua, de cima, porque os animais e os escravos fugiam para os cumes; assim como a palavra cerrero se refere ao animal doméstico, mas sem domesticação, porque eles fugiam para as colinas (Ortiz, 1975: 362).
Nota inteira
Antes de se tornar um termo para se referir a escravos, a palavra cimarrόn teve sua origem no "indigenismo" do século XVI, usado na época da conquista pela população nativa taino que fugia dos colonizadores. O acadêmico José Arrom, ao aceitar a hipótese de Fernando Ortiz, também sugere uma possível derivação de cimarrόn da palavra sίmaran, a flecha disparada do arco dos nativos, fugitivo, escapado da dominação humana, ou sylvan, selvagem ou selvagem em referência a plantas não cultivadas e fugitivo ou rebelde aplicado a animais domesticados. O termo, usado em referência a índios rebeldes, especialmente no período de 1529-1540, também foi usado na América para descrever marinheiros indolentes (Arrom 1983: 47-57). Em Cuba, seu significado está intimamente ligado a escravos fugitivos, também conhecidos como montaraces, bravos, esclavos alzados (Ibid.).
A palavra ganhou novo peso quando os escravos quilombolas participaram das revoltas do início do século XIX que abriram caminho para as duas guerras de independência, que surgiram como consequência do aumento do comércio de escravos, da escalada da violência nas plantações e do boom da produção de açúcar, a origem da dança dos milhões da oligarquia do açúcar (Moreno Fraginals 2001).
Essas indicações etimológicas e de uso do substantivo cimarrόn introduzem algumas reflexões sobre essa nova edição italiana da Biografía de un Cimarrόn do antropólogo Miguel Barnet sobre a vida do escravo fugitivo Esteban Montejo, encontrado pelo autor quando tinha 104 anos de idade.
A tradução italiana de 1968 tinha o título Autobiografia di uno schiavo (Autobiografia de um escravo), alterado em 1998 para Autobiografia di uno schiavo (Cimarrόn): em ambos os casos, uma escolha eficaz para um livro narrado em primeira pessoa, concebido como uma transcrição do relato autobiográfico oral do escravo fugitivo, mas que altera significativamente o título original.
Na presente edição, a escolha da literalidade, além de responder mais fielmente às intenções de Miguel Barnet, afasta-se do conceito de "autobiografia" para retornar ao de "biografia", enfatizando, assim, a relação entre o antropólogo e seu interlocutor privilegiado, Esteban Montejo, e um diálogo etnográfico prolongado no tempo, no qual ambos os sujeitos colaboram para romper o estereótipo, estudado por Fernando Ortiz, das bruxas negras, dos escravos "primitivos" e dos "feiticeiros" (Ortiz 2007).
A operação de colocar em primeiro plano o conceito de cimarronaje responde, por outro lado, às escolhas conservadoras feitas na revisão do texto, em que vários termos "indígenas" que passaram a ocupar um lugar central na história dos estudos sobre a escravidão em Cuba nos quase sessenta anos desde a primeira publicação italiana foram devolvidos ao espanhol.
Assim, o leitor poderá perceber e reconhecer o peso específico de termos êmicos densos como barracόn, ingenio, batey, palavras-chave ligadas ao espaço do engenho de açúcar e seu estado de exceção dentro do sistema de forças coloniais; e, igualmente, identificar mambί - cujo significado denegridor de "filho de macaco e abutre" é objeto de uma reapropriação cultural -, palenque, monte, como termos de um léxico de resistência. Nas ciências sociais cubanas e, de modo mais geral, caribenhas, tanto a primeira classe de termos quanto a segunda foram problematizadas, estudadas e mobilizadas na perspectiva da reapropriação e da criatividade das culturas africanas escravizadas. Essa linguagem, uma expressão de dominação e disciplinamento dos corpos, também se refere à revolta e à luta pela liberdade. Essa linguagem é subjacente a um conjunto de práticas religiosas, estéticas, sexuais e econômicas, negociadas com a condição de vida forçada sofrida, práticas que tecem uma existência autônoma dos escravos, uma "poética da relação" feita de desenraizamento, exílio e descobertas criadas na perambulação (Glissant 2007).
Colocar a palavra Cimarrόn na primeira posição do título significa inserir-se nessa perspectiva dos estudos negros atlânticos nascidos nas décadas seguintes à sua primeira publicação, e deslocar o olhar da subordinação e da passividade do escravo para focalizar a escravidão como um sistema mais amplo, observado a partir do conhecimento revelado neste livro: múltiplas formas de práticas e resistências que capilarizam o sistema de dominação e opressão, atuando clandestinamente no barracão para construir ativamente a cidadania, entendida, em um sentido amplo, como direito a direitos, imaginação, transgressão dos limites da desigualdade. A voz de Esteban Montejo narra a fuga do estado de exceção do ingênio, a plantação de açúcar onde o escravo, privado do direito ao seu próprio corpo, é mantido vivo em um estado de "ferida permanente" (Mbembe 201: 24). Mas o cimarrόn não narra apenas o regime de "morte em vida" da escravidão. A memória oral, o tema central deste livro, também revela "uma linhagem florescente", nos termos de Aimeé Césaire (2020: 118), uma "genealogia da revolta e da dignidade" da negritude narrada em aspectos minuciosos e diversos da vida cotidiana.
O Cimarrόn também revela muito sobre as práticas curativas, estéticas, sexuais, culinárias, botânicas e ecológicas da população cubana de origem africana. Para entender a cimarronaje, uma prática de cidadania realizada na dimensão espacial, esse último ponto é fundamental. No livro, a luta dos escravos pela liberdade - além da luta e da retórica revolucionária, além do facão dos mambises marrons - vem à tona em todos os momentos de encantamento pelo mundo vegetal e animal em que o marrom permanece como que suspenso. O sentimento ecológico de Esteban, o dos escravos Congos e Lucumises que ele descreve, contradiz o antropocentrismo e o dualismo moderno natureza/cultura enraizado no pensamento europeu, baseando-se no mutualismo entre sujeitos humanos, plantas, animais, espíritos e elementos meteorológicos. The Runaway Slave fala de ecologias indígenas nas quais as crenças e cosmologias estão enraizadas em uma dimensão ambiental relacional.
Essa relação entre o ser humano e o mundo sensível está condensada em uma palavra com um tom verde inextinguível: "el monte". Expressão de uma visão nativa, que não encontra uma tradução exata em sua contraparte italiana, "montagna", el monte designa antes uma "poética do viver", descartada no passado, juntamente com outras ecologias nativas, como uma mentalidade primitiva em oposição à visão científica moderna. A expressão, central na história oral afro-cubana, formalizada pelo estudo El monte (1981), da primeira antropóloga cubana Lydia Cabrera, continua a significar em Cuba o espaço da selva, mais sagrado do que o céu nas religiões afro-cubanas, o espaço de vida das divindades orixás, do poder dos espíritos e das forças sobrenaturais, das ervas com as quais se produzem curas ou encantamentos, a "igreja natural" onde as pessoas vão em busca de saúde e proteção (Cabrera 1981: 19-27).
O aspecto ambiental do cimarronaje, o enredo de fundo do livro, também se cruza com outro fio menos visível das façanhas de guerra e rebelião, da narração de uma história androcêntrica de heróis, bandidos, soldados, aventureiros, comandantes e mambises: as mulheres. Essa textura leve, bordada na trama principal do livro, aparece como uma constante. A representação da audácia sexual representa a virilidade, em sintonia com o clima da retórica revolucionária dos anos 1960 em Cuba, que heroicizava os homens barbudos, heróis da pátria.
No entanto, há várias lacunas nesse androcentrismo nacionalista: Desde o motivo recorrente de as escravas constituírem a "ruína" dos machos, motivo que sugere, além do jogo do desejo, corpos femininos não domesticados nem para os senhores brancos nem para aqueles outros senhores que gostariam de ser os negros; até o conhecimento de Ma' Patrona e Ma' Dominga, mulheres lucumises todas vestidas de pano de algodão e lona grossa, muito limpas, que vendem aguajola, uma iguaria de água, açúcar, mel e canela, nas ruas. E ainda, das congas e lucumises que gostavam de uma boa dança, que aproveitavam o trajeto da carroça da plantação até a área de corte e a levavam para os canaviais, na palha quente.
Esse status perigoso da mulher escrava não domesticada pela lei do pai (Butler 2006: 134) convida à reflexão sobre a crucialidade das relações amorosas e sexuais na sociedade cubana: como observa Verónica Stolcke, elas estavam sujeitas a políticas de controle pela elite branca dominante, que, por meio do ideal de endogamia e da proibição de casamentos inter-raciais, em vigor até 1881, o ano seguinte à abolição da escravidão, tentou reproduzir a ordem da desigualdade social (Stolcke 2017). No entanto, Montejo relata outras normas sociais predominantes entre a população negra, articuladas de forma diferente no contexto da plantação, em que fazer, desfazer e refazer relacionamentos amorosos e familiares constituía uma imposição da vida na escravidão: uma laceração dolorosa reorganizada por meio de modelos matrifocais da família negra cubana.
Não é coincidência que o livro mencione repetidamente as temidas bruxas que voam entre Cuba e as Ilhas Canárias, figuras metafóricas inspiradas pelo espectro de uma liberdade feminina descontrolada de sujeitos que, ao tentar contradizer sua própria domesticação no papel de procriadores de outros escravos, escapam das suposições da acumulação capitalista (Federici 2022).
É também disso que trata esse romance testemunhal, um clássico dos estudos sobre escravidão que pode ser lido de várias perspectivas.